03 abril 2010

um dia desses...

[...] chego no ponto de ônibus já consideravelmente suado, sento na primeira cadeira da esquerda, ofegante. tomando umas doses extras de ar, tento me recompor e começo a observar o movimento na rua. ônibus, pra cá , pra lá, pessoas também. tinha um hotel, do outro lado da rua, que parecia abandonado. eu achava interessante o estilo das portas e janelas, e pelo nome do mesmo, Mahatma Gandhi, proporcionava um ar exótico/exotérico pelo qual eu me interessava. mas de olhar para dentro da porta de uma varanda no andar mais alto do prédio,  desisti da ideia de um dia dormir no mahatma. se a fachada parecia abandonada, o interior então, nem se fala.
                   
                   quanta gente passa por nós e nem sequer notamos. freqüentemente me pego imaginando qual a chance de duas pessoas ,que não se conhecem, se encontrem por acaso em lugares diferentes na mesma cidade. isso ,porém, é mais um mirabolante futilidade. geralmente, se estamos à andar e olhar à esmo na/à multidão, quase nunca percebemos algo diferente. todos são iguais. mas você sempre julga, superficialmente. nesse dia, ninguém me chamou atenção, até que um cara, sem chinelos, sem roupas decentes, apenas uma camisa amarela de algum bloco de carnaval fora de época e um short branco, que já estava lá pr'um marrom, vem com a mão fechada na boca e senta do meu lado no ponto do ônibus. eu me afobei um pouco, não minto. maldito ser humano e seu preconceito.

- caralho, fudeu - logo pensei.  

- "esse cara vai me roubar. o que eu faço agora ? saio daqui ? hm.. é , boa ideia. próximo ônibus que passar e que for pra integração eu pego. um ônibus passa e eu não pego. vamo ver se ele faz alguma coisa. ele já tá muito doido, qualquer coisa eu corro ou bato nele. ele não parece ser forte..." - é assim que muita gente morre.

o cara, continuou sentado lá,bem leve, do meu lado. até que ele coloca a cabeça entre os joelhos e cospe no chão. daí, minha pulseira chamou atenção dele, por ser dourada, se é de  ouro eu não sei (não deve ser).eu vi o olhar dele para o meu punho. tento esconder a pulseira.

- "ele não deve pegar o mesmo bus que eu. deve ser o A ou então o 660". - pensava cheio de esperança.

espero cerca de 10 minutos, o ônibus chega.
- "merda! ele vem nesse ônibus, pqp. bem... pelo menos ele não vai sentar do meu lado, espero".
fui um dos primeiros a entrar no ônibus. passei pela roleta, olhei para trás se tinha alguma cadeira na janela vaga e, oba!, tinha uma. corri, sentei. não passou pela minha cabeça que na parte de trás, por ter menos gente, seria mais fácil d'ele me roubar, risco esse, que só pensei quando eu sentei e ele sentou duas fileiras atrás de mim.
 - "aah, ele deve descer na integração , pelo menos..." - não, ele não desceu.
descem alguns passageiros, entram outros, o ônibus segue seu rumo e eu , sigo preocupado com o tal marmanjo aqui atrás.  depois da terceira curva do caminho , ao lado da câmara municipal, escuto uma voz vindo d'um pouco mais na frente, porém de baixo. uma voz forte, confiante, apesar de estar fazendo um discurso de mendigo. 

- " bem pessoal, boa tarde, eu queria me apresentar meu nome é Marcos* e como vocês estão vendo,sou deficiente físico (ele tinha um problema de má formação, creio, ele só tinha os dois braços normais, as pernas e o troco eram , para não dizer outra coisa, inúteis) e estou pedindo a ajuda de vocês com qualquer quantia que seja 5, 10 ou 15 centavos,eu já ficaria muito agradecido. vocês sabem que eu não queria estar aqui, mas..a vida é difícil e eu tenho que perseverar, com a ajuda de Deus" . - dito isso ele depois saiu recolhendo as doações,primeiro na parte da frente do ônibus. enquanto o Marcos ainda estava na parte da frente, um de 2 senhores que sentaram juntos comentaram.

- " caramba, assim também não dá não. todo dia, todo dia. não tem um dia que ele não esteja aqui pedindo dinheiro. nesses dias ele tá ganhano mais dinheiro que eu num mês. "  - comenta um.
- "é mermo! assim eu também vou começar a pedir". - comenta o outro

eu penso :

- " puta que pariu, esses caras ainda ficam falando merda do outro que é paraplégico, como se o deficiente tivesse escolhido ficar assim "

enquanto consumia minha indignação, o cara vinha pegando as esmolas e chegando na parte do fundão do ônibus. eu pensei em dar dinheiro. eu tinha um troco. mas, sabe-se lá o pra quê ele quer esse dinheiro ? preferi mentir, como todo mundo faz.

- "Desculpe, não tenho dinheiro." - eu disse.
- " Tudo bem. Deus te abençoe!" - disse ele. engulo em seco.

quando olho pra trás, convencido que ninguém mais daria dinheiro pro Marcos, o cara do ponto do ônibus entrega 50 centavos para o deficiente, que com um sorriso deseja mais um "Deus abençoe" para o doador. ai eu me caio em pensamentos : afinal, eu que sou o educado, o que gosta de ajudar, o que sabe o que é certo, porque não ajudei enquanto o maconheiro ajudou ?
"fazer o bem sem olhar a quem" eu menti para minha melhor teoria de Deus. seja deus, fazendo o bem, sem olhar a quem. nisso, começo a ver o quanto sou hipócrita e o quanto uma pessoa que aparentemente não é nada , um ninguém, mas pode ajudar outro ninguém a ser um alguém. e eu , e muita gente que se acha inteligente, humilde, e tudo mais,  não passamos de lixos hipócritas que na hora da verdade, falta a coragem e transborda-se o preconceito. 

permaneço sentado, calado, pensando. o sono estava batendo em minha mente , como o vento em meu rosto. como a vergonha de ter pensado tudo e no fim, onde eu deveria fazer por onde valer a pena meus conceitos, fiz a coisa errada. 

[...]

o ônibus dobra na esquina do santa bárbara, eu me levanto, puxo a cordinha. olho para trás, e o carinha do ponto do ônibus ainda estava lá, sentado , só paz e amor. olhei para ele, esperando o ônibus parar. desci do ônibus e inalei todo o escapamento do ônibus quando ele deu partida. entrei pela portaria superior do santa bárbara e eu vi quão fraco sou. 

andei até o meu bloco, passo pelo alfabeto quase todo.subi as escadas, troquei de roupa. almocei. vou para o computador e volto à minha hipocrisia. mas agora é diferente. eu sabia que eu era hipócrita. 

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